Capítulo 1 – A minha infância em casa de Cacai Filipa

Esta amostra é composta por estratos dos cinco primeiros capítulos do meu livro “Toy Djack e o Paraíso Escondido – Memórias de um Cabo-Verdiano pelo Mundo Fora“, cujo lançamento foi feito em S. Vicente no dia 17 de Feveireiro, data em que completei 90 anos.

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… Num belo dia, a bondosa Cacai Filipa ia fazer ralada para o almoço (mandioca ralada numa rala feita de chapa furada com pregos, com o auxílio de um martelo). Mas a mandioca ralada fica muito molhada e para fazer a papa é necessário que esteja mais ou menos seca, apenas levemente húmida. Como havia muitas galinhas à solta, não se podia secar a ralada em qualquer sítio (as galinhas comê-la-iam), de maneira que ela resolveu ir secar a ralada em cima do fugon. A cobertura do fogãozinho já era bastante velha e estava apodrecida, mais do que parecia. Mas lá foi a Cacai secar a ralada em cima do fugon e chamou-me a mim, para ficar sentado com ela a guardar as galinhas. Momentos depois estava eu com a ralada dentro do fugon, porque a ripa de madeira que segurava a cobertura partiu-se e tanto eu como a ralada caímos. Felizmente não me machuquei.

Pipa Cacai gostava tanto de mim que não queria que eu me magoasse. Assim, lembro-me do pânico dela e do de toda a gente lá em casa quando me encontraram caído dentro do fugon. Elas queriam que eu guardasse as galinhas, mas por pouco não morri junto com a ralada, por causa das galinhas. Este episódio ficou gravado na história da família…

Capítulo 2 – Um método para parar de fazer chichi na cama

Eu fazia chichi na cama e notava que aquilo era preocupante, porque dormia junto de Cacai Filipa e do seu marido numa mesma cama. Eles não diziam nada, mas, apesar de ainda ser pequenino, sentia-me envergonhado.

Certa noite, antes de ir dormir, resolvi ficar escondido. Apanhei um pedaço de linha de coser e amarrei o meu pirilau para não fazer chichi na cama. Às tantas da noite sonhei que estava sentado numa bacia a fazer chichi… e foi nessa altura que acordei chorando desesperadamente, despertando assim toda a gente lá em casa. Estava desesperado de tanta dor. A linha introduzira-se na pele e o meu pirilau ficou muito inflamado.

Estava cheio de urina. Todos ficaram assustados, ninguém conseguia tirar a linha. Mas depois lá se conseguiu removê-la, já não me lembro como. A verdade é que, a partir daquela noite, nunca mais voltei a fazer chichi na cama.

Capítulo 3 – A minha Infância no Figueiral com Marco Chomeia

…Como no Figueiral não havia onde se pudesse comprar nem uma caixa de fósforos, a minha mãe mandou-me comprar açúcar, petróleo e fósforos num sítio chamado Chã.

A nossa Ribeira Prata era uma zona onde havia muita água e havia cascatas que convidavam qualquer pessoa a tomar um banho a qualquer hora. Mas a minha mãe não me deixava tomar banho nas ribeiras. Quando saí para ir fazer as compras, cheguei a um sítio onde havia um tanque, que até agora se chama tanque João da Silva, um tanque muito grande que estava então cheiinho de água. Muitos dos meus colegas estavam lá tomando banho, tão divertidos e encantados da vida que convidavam qualquer um a fazer o mesmo.

Quando me preparava para tirar as roupas e dar um mergulho, apareceu Nhô Marco, que tinha ido cortar o cabelo, mas ele não se apercebeu da minha intenção. Segui o meu caminho como se nada tivesse acontecido. Fui rapidamente fazer as compras e, aquando do meu regresso, todos se encontravam ainda a tomar banho. Todo fanfarrão, procurei um lugar seguro e guardei as compras, tirei a roupa e saltei para dentro do tanque que estava cheinho e que era muito profundo.

Pensei que seria só cair e pôr o pé no fundo, mas não consegui fazê-lo. Comecei a gritar e todos perceberam que eu me estava afogando. Os colegas que se encontravam mais próximo de mim chamaram os outros e tiraram-me para fora do tanque. Ao princípio não conseguia respirar, tinha o estômago cheio de água. Felizmente que nunca me tinha passado pela cabeça tomar banho sozinho naquele tanque…

Capítulo 4 – A história de uma arma

Um senhor imigrante vindo da América tinha uma horta de regadio, muito bem cultivada com mandioca e diversos tipos de plantas. Todas as noites ele ia dormir de guarda e, pela manhã, antes de se ir embora para casa, que ficava afastada, ia deixar um revólver em nossa casa, em cima da mesa.

Num belo dia, a minha mãe e Nhô Marco saíram e eu fiquei sozinho com a minha irmã mais velha. Pegámos naquela arma para brincar. E a partir daí, todos os dias, fazíamos a mesma brincadeira, até que acabámos por nos acostumar e fazer daquela arma uma brincadeira habitual de todos os dias.

O tempo foi passando e o revólver continuava todos os dias em cima da mesa, mas eu, apesar de ser muito esperto, não poderia imaginar que aquela mesma arma poderia matar uma pessoa. Todos os dias era a mesma coisa, sem que as pessoas adultas dessem conta do perigo. À noite, quando aquele senhor ia buscar a arma, eu ficava pensando se ele voltaria a levá-la no dia seguinte.

Um dia, aquele senhor adoeceu e um irmão dele, que ia fazer a guarda no seu lugar, não tinha o hábito de deixar nada em nossa casa, de modo que eu não sabia se ele teria ou não uma arma também.

Passado algum tempo, o senhor restabeleceu-se e retomou o seu trabalho normalmente. No dia seguinte, lá veio o revólver outra vez para cima daquela mesa. As pessoas mais velhas saíram, ficando eu e a minha irmã em casa. Nós costumávamos brincar com a arma, mas sem mexer no seu mecanismo. Mas naquele dia eu meti o dedo no gatilho e premi-o várias vezes, ora apontando para a minha irmã, ora para mim mesmo. No dia seguinte, peguei no revólver, coloquei a boca do cano nos meus olhos e apertei o gatilho. Mas eu não sabia nada sobre o que era o gatilho, a boca do cano ou a segurança… para mim aquela era uma brincadeira qualquer.

Só passados muitos anos, já eu estava no estrangeiro, é que tomei conhecimento real de uma arma e soube que aquele senhor deixava o revólver em segurança. O pior poderia ter acontecido se eu tivesse mexido na segurança. Seria uma desgraça, teria acabado com a minha vida ou com a vida da minha irmãzinha

Capítulo 5 – Os 10 Anos em S. Vicente

A minha mãe tinha um irmão em São Vicente. E como em 1940 havia uma grande epidemia em São Nicolau, com muita fome(g) e muita febre, as famílias em São Vicente mandavam buscar os outros familiares que estavam sofrendo em São Nicolau para ficarem com eles. No nosso caso, não foi pelo motivo da fome, porque Nhô Marco trabalhava em muitas terras que produziam muita comida, mas fugimos da febre. E foi com muito sacrifício que chegámos a São Vicente.

O meu tio, irmão da minha mãe, mandou buscar a sua irmã, tendo-me ela levado a mim e à minha irmã mais nova, ainda bebé. O meu tio, tão bondoso que era, teve uma curta passagem por este mundo… eram quatro irmãos em São Vicente, mas foi ele quem nos mandou buscar e por um lado isso foi muito bom, porque assim pude escapulir-me das mãos de Nhô Marco. Mas depois da morte do meu tio, não faltou um outro para substituí-lo.

A nossa saída de São Nicolau não foi nada fácil, porque a ligação entre São Nicolau e as outras ilhas era muito complicada. Até as cartas demoravam muito tempo a chegar a São Nicolau pelo correio. Por várias vezes tivemos de dormir na Praia Branca na tentativa de apanhar o navio mais rápido, Iarral, mas não foi tão fácil como imaginávamos. E, quando apanhámos o navio Ribeira Brava, levou três dias para chegarmos a São Vicente, devido a uma calmaria.

O mar estava calmo, ninguém enjoava. Fiquei encantado com um macaco, Fatu, e com um porco, os dois considerados tripulantes especiais a bordo. O Fatu estava a comer uma espiga de milho assada na brasa, junto à sua jaula, e ao pé dele estava o porco a dormir, como sempre. De vez em quando, o porco deixava sair uns gases que cheiravam muito mal e Fatu ficava muito chateado. Momentos depois, mais outro. Fatu ficava cada vez mais furioso, tapava o nariz com as mãos e saltava com muita raiva. Depois de ele terminar de comer o milho, o porco soltou mais uma das suas bombas e Fatu pegou na enganha(g) e meteu-a no ânus do porco. Passados alguns minutos, o porco levantou-se, muito agitado, correndo de um lado para outro, e Fatu, vendo a angústia do porco, pulava de alegria. Então, o porco resolveu sentar-se e arrastar o traseiro por todo o convés, até a enganha sair. Foi um cheiro que ninguém podia suportar. Houve uma risada geral, houve gente que até fez chichi nas calças de tanto rir.

Mais tarde, Fatu entrou na sua jaula, deixando o rabo de fora. O porco aproximou-se e abocanhou o rabo do macaco, que saiu da jaula, pegou num pau de pilão que se encontrava perto e – pumba na cabeça do porco! O animal deu um grito de dor muito profundo, e foi mais risada, desta vez ainda com mais graça…

O livro encontra-se disponível nos seguintes locais:

S. Vicente:

– Paraíso Escondido Produções (Página de Contacto)

– Livraria do Centro Cultural do Mindelo

– Foto Djibla

Praia:

– Livraria Pedro Cardoso

– Livraria Nhô Eugénio

S. Nicolau:

– Ribeira Prata – Sr. Domingos Jesus (Mingo)

– Praia Branca – Casa da Morna

Lisboa:

– Livraria Barata

E também nas principais Plataformas Online (Formatos Impresso e E-Book):

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