A primeira vez que ouvi a morna “Bô era Tudo na nha Vida” foi na festa do 80º aniversário do papá, em Fevereiro de 2012.
Não estava à espera que o meu pai alguma vez na vida escrevesse uma morna tão emotiva, que falasse do enamoramento, do amor, da saudade, da tristeza e do chorar. Foram raras as vezes que vi o meu pai emocionado ou a chorar. Tinha a noção de que ele não tinha esse tipo de sentimentos, ou então não os sabia expressar. De certa forma, era como se eu o idealizasse como um ser psiquicamente, emocionalmente muito forte, que nunca se deprime, nunca se abala, nunca se apaixona e que não fosse capaz de exprimir esses sentimentos de forma tão clara. Lembro-me de um dos vários conselhos que o meu pai me deu durante a minha adolescência: “Deves começar a namorar só depois de acabares o curso”!
A minha irmã Eva, que foi a principal organizadora da festa, reservou-nos várias surpresas, uma das quais foi a Mara (minha sobrinha, de 15 anos, filha dela) ter cantado “Bô era tudo na nha vida” em homenagem à minha mãe. Na opinião da Eva, faltava a presença da minha mãe para que a festa fosse perfeita. Essa música seria uma forma de evocar a memória da mamã. Eu tive um misto de sentimentos: alegria e orgulho do meu pai por ter escrito uma morna tão expressiva. Senti também saudades da minha mãe, tive aquela sensação de arrepio que normalmente se tem quando se ouve uma música que nos toca e reparei que grande parte dos convidados tinha sentido o mesmo. Muitas pessoas choraram, outras tinham um semblante triste. O que predominava era uma sensação de saudade e um enorme respeito pela mamã, bem como orgulho do meu pai. Eu não sabia como me comportar. Não chorei, mas fiquei constrangido.
Assim como o meu pai, a Eva gosta de fazer surpresas. Ter pedido à filha para cantar a música do avô em homenagem à avó, naquele momento de celebração do 80º aniversário do avô, foi de facto um momento de ternura.
O papá teve muito cuidado durante a elaboração deste CD, em parte para poder surpreender a família. Eu, que vivo em Portugal, nunca o tinha ouvido. Só agora, depois do seu lançamento, é que consigo perceber o porquê de o papá ter feito isso e também o porquê de a Eva nos ter surpreendido na festa.
Nesta música, o papá fala do amor que tinha pela minha mãe: “tu eras tudo na minha vida”. Aborda também a despedida – uma clássica situação do povo de Cabo Verde, sobretudo daqueles que vivem a emigração, quer seja a própria, quer seja a de um familiar. O meu pai refere que numa noite de luar, quando ele e a mamã estavam abraçados, choraram de saudade devido à partida dele “pa terra longe”. Mais uma vez, o dilema que alguns poetas cabo-verdianos cunharam de “querer ficar e ter de partir”. Depois, o meu pai faz uma promessa à amada – se esperares por mim, não te arrependerás. Bom, confesso que não conhecia essa vertente sedutora e bastante persuasiva do papá, que, como se veio a verificar, acabou por ser bem sucedido.Depois, o papá refere que também cumpriu o seu dever e, quando voltou, ele e a minha mãe casaram-se.
Noutra estrofe, papá faz referência aos seus “filhos biológicos”, que resultaram do amor dele e da mamã, e aos seus filhos afectivos, que cresceram na nossa casa, classificando-os – os filhos biológicos e os afectivos – de “Árvore Frondosa”. Aqui devo reconhecer que me sinto um pouco narcisado, tendo em conta que não era habitual eu ouvir esse tipo de elogios durante o meu crescimento. Uma das estratégias de educação do meu pai passava por não fazer muitos reforços positivos aos filhos na presença deles. Pelos vistos, com a idade, o papá tornou-se mais dócil ou então sentimentalmente mais expressivo.
Provavelmente, o ponto mais alto desta música é a estrofe número 6, que aborda a morte da minha mãe. Parece-me afectuosa e respeitosa a forma como o papá se refere a isso – deixaste os nossos frutos só para mim… fizeste a tua viagem, deixaste-me só, a chorar a separação, a solidão, a saudade. Nesta passagem, papá lamenta a ironia do destino. Ele escolhera a emigração como uma alternativa para poder melhorar a sua condição financeira, construir um lar, ter uma família e filhos com dignidade, mas quando se reforma e espera voltar de vez para a terra e usufruir de uma vida tranquila, de felicidade e sem limitações junto da mulher e dos filhos, acaba por ficar sozinho devido à morte da mulher.
A última estrofe da música refere que o papá ficou triste, a sofrer profundamente, porque a viagem da mulher não tem regresso. Analisando retrospectivamente o comportamento do papá nos 10 anos que passaram desde a morte da mamã e o lançamento deste CD, noto que ele se transformou muito. Inicialmente, passou por uma fase de tristeza e luto e depois por uma fase de refúgio na Ribeira Prata. Acabou por amenizar essa sensação de vazio, essencialmente, de dois modos: 1) passando muito tempo na sua terra natal – Ribeira da Prata, São Nicolau – com a sua gente, com os amigos, no lugar onde claramente ele se sente melhor; e 2) dedicando-se à música: passou a escrever poemas, a compor canções e a tocar com amigos na Ribeira da Prata.
Para terminar, gostaria de dar os parabéns ao papá pelo poema e morna que fez e dizer-lhe que, uma vez mais, ele me surpreendeu pela positiva.
Amílcar Silva dos Santos – Lisboa, Junho de 2012.
Homenagem ao Toy Djack, na festa do seu 80º aniversário. A neta Mara Santos Gomes canta “bô era tudo na nha vida”.