Alguns dias após o lançamento do CD do meu pai, decidi ouvi-lo do princípio ao fim, durante uma viagem de carro, de modo a poder ter tempo e contexto para reflectir. Tive a sensação de que estava a ouvir uma compilação dos principais pensamentos, conselhos e preocupações do meu pai. À semelhança de livros do género “Gestão segundo…” ou o “Tao de …”, esta música (“Vida sem droga”), em particular, contém frases e expressões que o meu pai usava para educar os filhos, durante a adolescência. Algumas dessas expressões, como por exemplo “cuidód na quel primer fuminho” (“cuidado com a primeira passa”), ficaram gravadas na nossa memória, não apenas pelo seu significado, mas principalmente pela forma como eram ditas pelo meu pai, em crioulo da ilha de São Nicolau, com a pronúncia bem marcada de Ribeira Prata e com uma entoação muito cómica, juntamente com uma expressão facial séria, por vezes, quase intimidatória. Esse método do meu pai fazia-nos reter os conselhos, segui-los, tê-los sempre presentes, sem deixar de lhes achar imensa piada. Depois, qual vírus, espalhavam-se de forma epidémica, quando eu e os meus irmãos, à primeira oportunidade, usávamo-los para, em jeito de brincadeira, educarmo-nos uns aos outros. Assim como a frase “o meu único vício é o trabalho”, gozávamos uns com os outros, sem descurarmos o aspecto pedagógico da brincadeira, repetindo as frases “quel primer fumo ê que perigoso” ou “cuidód na quel primer fuminho”.
Há uma história relacionada com o “fume/fuminho” (passa) que se tornou clássica em nossa casa. Certo dia, alguns jovens estavam a fumar ganza próximos da nossa casa, na varanda da mercearia. Ao se aperceber da situação, não obstante os problemas de olfacto que a afectavam, e ao se aperceber de que eu e o meu irmão Abrão estávamos a passar perto desses jovens, a minha avó paterna de 90 anos, que estava no terraço, a uns 8 metros de altura, gritou indignada: “Amitra, Abrão, bsot sei de quel fum” (“Amílcar, Abrão, saiam da fumarada/não apanhem o fumo”, ordem essa que foi dada com muita veemência e vigor, com o braço direito flectido em forma de V invertido, de fora para dentro. Escusado será dizer que o meu irmão Laurindo, o mais gozão de todos, achou tanta piada a essa história que passou a contá-la vezes sem conta e, muitas vezes, associada à expressão do meu pai sobre a primeira passa e à palavra “Gandjon”, inventada, que eu saiba, por um amigo nosso chamado Lela, a partir da palavra Gandja (ganza), significando aquele que fuma ganza e já apresenta critérios avançados de dependência.
Tenho de tirar o chapéu ao meu pai porque, sem dúvida, ele era um educador exímio. Sabia mostrar-nos o que devíamos fazer e também o que NÃO devíamos fazer. Por vezes, a sua assertividade era um pouco rígida e nessas alturas lá estava a nossa mãe para nos dar os mimos necessários. Penso que beneficiámos muito com o equilíbrio que se gerou entre, por um lado, a coragem, a determinação e a assertividade do meu pai e, por outro, a bondade, a harmonia e a afectividade expressa da minha mãe.
A frase “não sigas os vícios do mundo” (“Ca bô segui vissarada de mundo”) é mais uma das frases típicas do meu pai. Não é fácil traduzir a palavra “vissarada” (adição, dependência ou vício) neste contexto, sem se perder parte do seu significado, algumas das suas várias conotações. Mas arrisco-me a dizer que a sua conotação mais marcante é a que lhe é dada pela expressão e entoação do meu pai, em crioulo da Ribeira Prata, São Nicolau, fazendo com que pareça sempre cómica, mesmo num contexto muito sério.
Uma vez mais, o meu pai conclui com uma mensagem positiva: “Se tens auto-confiança, luta para venceres na vida e construíres a tua felicidade”.
Amílcar Silva dos Santos
Lisboa, Junho de 2012.